sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Sob a Marca do Dragão - Cap. 3 (parte 2 de 2)



Enquanto Rafael se debatia contra a escuridão que avançava na sua mente, Diana tinha hesitado na sua fuga. Sentia que algo estava errado. Sentia o seu dragão latejar de uma forma diferente. Não era um latejar mais fraco, mas mais lento. Pequenos flashes surgiam na sua mente e ela não percebia de onde vinham. Imagens que vinham e iam de uma rua, casas, gente ao fundo... Ela não percebia, mas pressentia que algo não estava bem com Rafael. Só podia ser por isso, nunca lhe tinha acontecido nada parecido. Ela avançava pela rua, procurando-o sem êxito. Sentia-se cada vez mais ansiosa. Rafael tornou a levantar-se e caminhou um pouco mais em direcção à rua principal, na direcção de Diana. Não sabia porquê, mas não podia investir as suas forças em pensamentos desnecessários naquele momento. Seguia o seu instinto. Não estava muito longe, viu a torre que antecipava a vista da saída da citadela.

Diana viu uma nova imagem na sua mente, desta vez uma torre. Parou. A torre era um pouco mais à frente. Correu. Pensou que aquela seria a vista da torre a partir da rua quase em frente a esta. Rapidamente chegou até lá. Um pouco mais à frente, Rafael tombava, cedendo à neblina e à escuridão.

- Rafael! O que se passa? O que tens?
Ele abriu os olhos, viu Diana por entre a neblina e esboçou um fraco sorriso. Voltou a fechá-los.
- Sossega... – ainda disse, antes de ceder por completo à noite escura.

Dificilmente sossegaria sem saber o que se passava. Mas já não estava assustada por si, estava preocupada com ele. Colocou a mão na face de Rafael: não lhe parecia estar quente, não parecia transpirar, tinha as cores normais, mas tinha perdido os sentidos. O que se passaria com ele? Não tinha dúvidas de que as imagens que tinha visto estavam a ser emitidas por ele. O que se passava consigo também? Não sabia o que pensar. A sua vida encontrava-se dentro dos limites do normal antes do seu caminho se cruzar com o dele. «Calma!» Pensava. «Tem sido muita informação, só estou a precisar de digeri-la! É só isso!»

Não passou muito tempo até que Diana sentiu o latejar do seu dragão acelerar o ritmo. Olhou para Rafael e viu-o abrir os olhos, finalmente despertando. Ela teve vontade de disparar uma série de perguntas, mas achou melhor esperar um pouco, dar-lhe tempo para se recompor. Ele levantou-se lentamente e ela imitou-o.

- Estás bem? – acabou por perguntar.
Parecia-lhe que ela não fazia a mínima ideia do que tinha acontecido. Ele sondava a sua mente, mas esta estava muito agitada.

- Sim, estou bem.
E não dizia mais nada. Ela continuou a olhá-lo e ele devolvia o seu olhar.

- O que aconteceu? – acabou por perguntar Diana, impaciente.
- O que aconteceu?! Tu aconteceste!
- Eu?! Não percebo!
- Usaste a magia contra mim!
- Eu?! Claro que não! Usar a magia como?! Nem sei o que aconteceu! Estava aflita, ouvi-te, mas não te encontrei... uma série de imagens estranhas à minha mente surgiram nos meus pensamentos...! Achei que algo de errado se passava contigo!... Encontrei-te, então, caído nesta rua!

Diana estava visivelmente agitada.

- Mas fizeste-o! Voltaste a usar a magia sem te aperceberes. Parece-me que precisas de aprender a controlá-la!
- O que é que aconteceu? Não fiz nada!
Diana dava cada vez mais sinais de inquietação.
- Tentei comunicar contigo, assustaste-te e enviaste energia na minha direcção, procurando bloquear-me. Não esperava! Apanhaste-me completamente desprevenido, num local onde era tudo menos seguro cair desacordado!

Diana olhou-o demoradamente. Ele parecia-lhe convicto do que dizia, mas ela nada tinha feito! Afastou o olhar, procurando rever os acontecimentos, os seus pensamentos, procurando descortinar algo mais. Rafael captava os seus pensamentos com facilidade, ela parecia-lhe demasiado agitada para sequer se lembrar de os bloquear. Recordava a voz na sua cabeça, sem o ver em volta, os rostos das pessoas, sentia-a assustada, um grito surdo... um grito! As nuvens a taparem a lua... noite cerrada sem luar! De onde vinham aquelas imagens?! Confusão. Diana olhou novamente Rafael nos olhos.

- Não sei o que aconteceu!... O que está a acontecer comigo?
- Pode ser que a magia esteja a despertar em ti... ou que nunca tenhas dado pela sua manifestação, sem a orientação de alguém que o percebesse... ou...

Rafael calou o seu pensamento. Ou o seu lado sombra estaria a despertar, pensava, reclamando a sua herança! Não! Ela estava deveras assustada, defendera-se instintivamente, tal como o tinha feito com os seus pensamentos da última vez que se tinham encontrado, pensava.

- Ou...? – perguntou Diana, estranhando a interrupção.
- ... ou algo mais que nos escape à razão.           

O rosto de uma jovem surgiu na sua mente. Era a rapariga que ela tinha deixado no seu lugar, na venda. Diana sentiu uma nova preocupação.

- Tenho de ir! – disse.
- Espera! Procuravas-me. Querias algo?

Diana não se lembrara mais do que a tinha levado até ali. Estava confusa. Rafael viu a imagem do dragão da lua surgir na sua mente, a lua reluzindo, seguiu-se a imagem do seu próprio rosto, do seu dragão, a imagem de ambos, próximos, a imagem de um dragão mudando de pouso para o braço de uma criança, o rosto de uma mulher com traços parecidos com os de Diana... as imagens rodopiavam na sua mente. Diana ainda estava assustada e agitada com todos os acontecimentos. Ele podia senti-lo de tal forma que teve de quebrar a ligação com a sua mente.

- Querias algo? – repetiu Rafael, procurando interromper o fluxo de pensamentos de Diana.
Ela lembrou-se uma vez mais de Dália.
- Noutra altura. Agora devo ir. Desculpa... por qualquer coisa que possa ter feito! Não foi minha intenção... Até depois!

E saiu apressada, quase correndo até à praça, onde a sua irmã a esperava.

Diana percebeu ao chegar que, pela sua cara, Dália estava pronta a dar-lhe um raspanete pela demora, mas assim que viu a sua agitação pareceu esquecê-lo.

- O que aconteceu? Estás bem?
- Estou. Desculpa. Acompanho-te na entrega e na volta a casa. Ajudas-me a recolher a fruta nos cestos?
- Sim, claro! Mas o que aconteceu que te deixou tão perturbada?
- Depois, Dália! Agora ajuda-me!

Diana seguiu calada, pensativa, todo o caminho. Ela agradecia o silêncio de Dália e a paciência que esta havia aprendido a ter quando queria arrancar-lhe alguma confidência. Ao chegar a casa, Diana e Dália rapidamente arranjaram maneira de sair juntas até onde pudessem conversar descansadas. Foram até atrás da casa, apanhar alguma roupa que secava no estendal. Dália fazia questão de olhá-la nos olhos, como que dizendo «estou à espera!».

- Encontrei alguém que tem uma marca como a minha...
- Deveras?! Disse-te o que significa?
- Que representa a magia do dragão da lua.

Dália levava as mãos à boca, que se abria surpreendida naquilo que parecia ser um misto de entusiasmo e medo pela confirmação de que ela teria de manter escondida aquela marca pela sua segurança.
- E a dele representa a magia do dragão do sol.
- Ele?! – disse a sua irmã ameaçando um sorriso.

Diana ignorou a provocação.
- E o que aconteceu para estares tão perturbada quando voltaste?
- Têm-se passado coisas estranhas... Quando estou perto de Rafael – é o seu nome – sinto o dragão latejar na minha pele. Ele diz que os dragões despertam quando se aproximam uns dos outros...
- Há mais?! – perguntou Dália empolgada.
- Parece que sim. E quando fui encontrá-lo hoje, ouvi a sua voz na minha mente, mas não o vi em lado nenhum. Assustei-me e... não sei o que aconteceu, mas ele diz que, para me proteger, fiz com que ele caísse desacordado. Juro que não sei o que aconteceu! Não sei o que pensar!...
- Que há magia em ti! Se ao menos tivesses alguém do teu sangue a quem pudesses perguntar… pedir orientação...!
- Sim... mas não tenho...
- E se falares com o nosso pai? Pode ser que possa dizer-te algo mais...
- Se lhe contar o que me está a acontecer, é bem capaz de me mandar para longe! Ele nada quer que tenha a ver com magia perto dele. Nunca percebi muito bem…!
- Pergunta-lhe apenas sobre o teu passado, a tua família de sangue... Não lhe contes nada disto!
- Temo que não seja um assunto do seu agrado, mesmo após tantos anos.
- Que mal poderá fazer? Pergunta e logo saberás!
- Talvez...

Diana voltara a pensar no dragão do sol.
- Sabes que ele consegue esconder o seu dragão? Quer dizer, fazê-lo desaparecer!...
- Desaparecer da pele?
- Sim... ele tem o dragão tatuado em parte da sua face e pescoço – pior do que o meu para esconder! E consegue fazer com que ele desapareça e apareça na sua pele!
- Será que também podes fazer o mesmo? Isso era fantástico! Seria mais seguro! Esconder essa marca de um marido não é fácil! Acho que esse é o forte motivo pelo qual o nosso pai ainda não te obrigou a desposar alguém!
- Então mesmo que possa aprender a fazê-lo, nada podes dizer, pois ainda não é de minha vontade desposar quem quer que seja! – disse, mostrando-se um pouco irritada.
- E... é bem parecido, Rafael? – perguntou Dália, colocando uma expressão inocente na sua cara.

Diana olhou-a nos olhos e acabou por rir.
- És incorrigível, maninha!

Dália era mais nova que Diana e, com as suas 15 primaveras, já pensava em constituir família. Determinada a encontrar um bom partido para ela e para a sua irmã mais velha, não perdia uma oportunidade para tentar fazê-la interessar-se por alguém. Diana irritava-se muitas vezes com este ímpeto da sua irmã, no que tocava à sua pessoa, mas já se havia habituado aos seus devaneios e não conseguia evitar de se sentir agradada ao vê-la sonhar com um rumo para a sua própria vida.

Sob a Marca do Dragão - Cap. 3 (parte 1 de 2)

fotografia de
Sofia Morgado



No dia seguinte, Diana estava na venda de fruta, sentindo-se inquieta. Queria que Rafael aparecesse para lhe contar o seu sonho e saber se poderia ter algo a ver com o dragão ou se seria apenas a sua mente a pregar-lhe partidas. Tinha-lhe parecido tão real! E se as coisas se tivessem passado como no seu sonho? A sua mãe dizia correrem perigo e temer pela sua vida. De que falaria ela? Talvez a mulher que a criara soubesse de algo, mas também já não podia perguntar-lhe. E o seu pai de criação? Era melhor nem pensar nisso! Era de poucas falas e sempre fora avesso a conversas que tivessem a ver com a sua família de origem. O que a sua mãe dissera no sonho fazia-a crer que poderia ter algo a ver com o seu dragão. Se assim fosse, seria mais um motivo para o considerar uma maldição, que inclusive a tinha levado a ficar sem os seus pais. Tantos pensamentos cruzavam a sua mente que não conseguia concentrar-se naquilo que fazia. Voltou a lembrar-se de Rafael. Pensou como lhe daria jeito que a sua irmã ali estivesse para tomar conta da venda. Queria procurá-lo, contar-lhe o que acontecera. Tinha tantas coisas para lhe perguntar! Qual seria a sua história? Como teria recebido ele o seu dragão? Procurava vê-lo em cada rosto, mas nem sombra daquele misterioso homem. A sua mente dizia-lhe que não podia confiar nele, mas algures em si sentia que sim. «Tudo a seu tempo», forçava-se ela a recordar. «Quando menos esperar ele aparece», procurava ela convencer-se, voltando uma vez mais a sua atenção à fruta, à banca e aos fregueses.

Não passou muito tempo até que a sua irmã passou por ali.
- Que bom que estás aqui! – disse prontamente Diana, assim que a viu.
- Vim entregar uma encomenda aqui perto e antes de voltar para casa lembrei-me de ti e pensei que podia passar pela praça!
- Os deuses ouviram-me, pois precisava mesmo de ti aqui. Preciso de me ausentar um pouco. Não me demoro. Ficas aqui por mim?
- Não devo demorar-me. Tenho outra encomenda para entregar no caminho.
Dália, irmã de Diana, ajudava seu pai a trabalhar o couro e a fazer a entrega das encomendas.
- Vá lá! É só um pouco. Não demoro!... – insistia Diana.
- Onde vais?
- Preciso encontrar uma pessoa. Não demoro. Obrigada! És uma enviada dos deuses! – disse sem demora, afastando-se rapidamente.
- Não te demores! – ainda pediu Dália sorrindo.
Diana desapareceu por entre os aldeões.

Rafael deveria ter já voltado a Quebir, mas uma parte de si queria ficar mais tempo pela vila. Queria saber mais sobre a portadora da magia do dragão da lua, a mulher com quem o seu destino se cruzava. Consigo tinha crescido a ideia de que um dia se cruzaria com o dragão da lua e travaria uma luta da qual sairia vencedor. Desde miúdo sonhava com o dia em que o encontraria, matando o portador do dragão e domando-o, realizando o destino que lhe tinha sido profetizado: a unificação do poder dos dois dragões. No entanto, nos seus devaneios de criança, nunca tinha imaginado que este seria uma mulher. Crescia sabendo que a família que guardava este poder já não existia, mas pelo simples facto do seu destino mágico não ter mudado, sonhava que de alguma forma o dragão da lua voltaria ao Reino dos homens. A impaciência da adolescência trouxera-lhe finalmente a certeza de que isso não aconteceria e durante muito tempo se sentiu revoltado com os Deuses por não lhe darem a oportunidade de realizar o seu destino mágico. Para quê ter um se não havia possibilidade de o realizar? Não fazia qualquer sentido. Até ao dia em que encontrou Diana e viu a sua “marca”.

De um momento para o outro, os Deuses decidiram agraciá-lo, pensava, mas de uma forma tortuosa. Não pelo facto do seu portador ser uma mulher, mas por ser alguém que poderia comparar a uma criança em matéria de magia. Ela nada sabia sobre o seu próprio dragão! Nada sabia sobre a magia que lhe corria no sangue! Ele procurava sempre justificar os seus actos com um propósito maior e fazê-lo apenas porque era o seu destino não lhe parecia agora algo de tão grandioso. Se fosse um dos que haviam sido portadores daquele poder no passado, parecia-lhe ter razões de sobra para poupar o mundo de tal perfídia. Mas, mesmo sem conhecer Diana, dela sentia luz e não a sombra. E apesar de ter virado costas a qualquer destino que lhe tivesse sido imposto pelos Deuses, era difícil esquecer todo o seu investimento para aquele momento. Não podia apenas olhar para o lado e seguir em frente... não sem saber um pouco mais sobre a tortuosa jogada dos Deuses.

Quando Rafael viu Diana ao longe, afastando-se da venda de fruta, onde deixara outra jovem no seu lugar, decidiu segui-la. Conheceria um pouco mais sobre a rapariga. Sabia que se fosse simplesmente ter com ela, a história dos dragões lhe seria cobrada e não tinha a mínima vontade de lhe falar sobre isso. Não naquele momento. Sabia também que ela sentiria o seu dragão assim que se aproximasse um pouco mais, mas estava demasiada gente na praça para não o fazer. Decidiu, por isso, segui-la pelos telhados. Dessa forma ela não o veria. Subiu agilmente pelos apoios do telhado de uma casa próxima, numa rua lateral. Com rapidez chegou lá acima sem ser visto. Decidiu aproximar-se um pouco mais e focar a sua atenção nos seus pensamentos. Tal como esperava, apanhou-a desprevenida.
«Preciso encontrá-lo. Preciso contar-lhe!»
Ficou atento. A quem se referiria?
«Onde será que posso encontrar Rafael?»

Procurava-o? Continuou a segui-la, atento. Acabou por aproximar-se um pouco mais.
Diana sentiu a sua pele latejar sob o dragão. Olhou em volta. Sentia que ele estava por perto, mas não o encontrava com o olhar. Rafael apercebeu-se. Ele também sentia o seu dragão.
«Procuras por mim?» - ele arriscou.
Diana voltou a cabeça rapidamente, mas não o viu. Olhou em volta. Sentiu-se confusa. Quase podia jurar que o tinha ouvido bem perto de si!
«Ouviste bem, sou eu!»

Ela assustou-se! Tinha a certeza que o ouvira, mas continuava sem o ver. Agora recuava, olhando em volta, assustada.
- O que se passa? Onde estás?
Algumas pessoas que passavam perto olhavam-na de soslaio e seguiam caminho, afastando-se.
«Perto. Bem perto!»
Ela virou-se de novo. Nenhum rosto conhecido em volta. Recuava. Pensava que ou enlouquecia ou aquilo era fruto de magia e nenhuma das opções lhe agradava ou sossegava nem um pouco.
- Ei! Cuidado! Olha para onde segues! – refilou um aldeão em quem tinha esbarrado ao recuar.

Diana esboçou um gesto de desculpas, mas continuava em sobressalto, virando-se, olhando a toda a volta. Rafael achou que deveria terminar a brincadeira. Parecia-lhe que a qualquer instante ela dispararia dali a correr.

«Na tua mente. Tem calma! Procuravas-me?» 

Cada vez mais assustada, soou um grito interno e começou a afastar-se, voltando, em direcção à praça. Subitamente, a mente de Rafael tinha ficado turva, uma neblina negra surgia e queria instalar-se. Ele cambaleou, pousou a mão no telhado onde se encontrava. Lutando contra a inconsciência que forçava caminho, procurou aproximar-se da beira e descer, mas ainda estava um pouco longe. De novo o negrume invadindo a sua mente, deixando de ver, e uma vez mais vislumbrando a luz em volta, lutando contra o apagão que ameaçava acontecer a qualquer instante. Cambaleou de novo e, escorregando, chegou próximo da beira do telhado. Conseguia forçar a consciência do mundo em volta apenas por breves instantes de cada vez, por entre aquela neblina que se adensava cada vez mais. Viu uma carroça com feno um pouco mais à frente, só tinha de conseguir lá chegar e cairia em segurança. Continuou a lutar. Já na direcção da carroça, deixou-se cair, encurtando a distância entre si e o chão. Da carroça caiu, desta vez, para o chão e cambaleando tentou aproximar-se da rua principal.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Sob a Marca do Dragão - Cap. 2 (parte 2 de 2)


Rafael afastou-se de Diana. Ainda lhe custava acreditar que ela tivesse o poder do dragão da lua, pois tanto quanto sabia até então este encontrava-se extinto. Diana parecia-lhe simpática e parecia nada saber sobre o poder do seu dragão, a sua história ou como as suas histórias se cruzavam, mas não podia confiar nela. E naquele momento não se podia distrair do seu objectivo. Os seus pensamentos teimavam em voltar àquele encontro e à descoberta do dragão da lua, mas Rafael forçava-se a concentrar a sua atenção na tarefa que tinha em mãos.

Ao chegar às casas, perguntou a um aldeão se lhe sabia dizer onde encontrar alguém que conhecesse o falecido. Fingiu conhecê-lo, estar de passagem, querer visitá-lo e ter acabado de saber o sucedido. Como não era dali, ninguém o conhecia e a justificação era aceite.

- Quero saber algo mais. – dizia Rafael, fingindo um ar consternado.
- Ruy e Timoteo conheciam-no bem, eram companheiros de trabalho e de conversa. Pode encontrá-los umas casas mais abaixo. – disse o homem apontando a direcção.

Agradeceu e avançou na direcção que o outro apontou. Encontrou um dos mencionados mais à frente e contou de novo a sua história. Ele disse-lhe que nada mais sabia sobre a morte do seu amigo; nada mais do que aquilo que andava na boca do povo: que ele e outro tinham sido encontrados mortos numa ruela, provavelmente assaltados. Contou ainda que havia um amigo que tinha ficado mais abalado, pois mal saía sequer de casa. O assunto interessou-o. Rafael quis saber onde poderia encontrá-lo. Procurou-o onde lhe fora dito que o encontraria, mas a casa encontrava-se vazia. Parecia-lhe que tinha levado diversas coisas e saído meio à pressa. E pelo cheiro de hypocras no ar, o vinho doce e condimentado, diria que não devia ter saído há muito.

«Não posso deixar que me veja!» captou Rafael na sua mente. «Se for um deles, sou um homem morto!»
Ele ainda se encontrava por ali.
- Está aqui alguém? – tentou Rafael.
Do outro lado apenas silêncio.
- Procuro alguém que tenha informações sobre um amigo meu!... – ele ia falando e andando, procurando captar algo mais, assim como a sua origem.
«E se não tiver nada a ver?! Não, é melhor não arriscar.» - continuava o outro a pensar.
Pareceu-lhe que o homem se encontraria por trás de uma trave onde se encontravam outras madeiras encostadas. Continuou a andar naturalmente nessa direcção.

- Que pena! Parece que não encontrarei aqui quem me possa ajudar!
Ao passar ao lado da trave, olhou para o lado e fingiu alguma surpresa ao encontrá-lo ali. O homem pareceu assustado, mas não reagiu.
- ...Posso ajudá-lo? – acabou este por perguntar a medo.
- Espero que sim. Procuro alguém que conhecesse Artur, um dos homens que foram encontrados mortos numa ruela!
- Não sei se posso ajudá-lo... – o outro dizia.
- Procuro saber algo mais sobre o sucedido. Há muito que não o via, passei por aqui, aproveitei para visitá-lo e soube o que aconteceu. Que tragédia!
- Conhecia-lo?!
- Sim, mas, como disse, há muito que não o via. O que aconteceu? Foi mesmo um assalto, como dizem? Ele tinha mulher? Filhos? Alguém que possa precisar de ajuda neste momento?
«Não deve ser enviado dos hereges da irmandade. Parece preocupado!»
- Não. Cuidava apenas do seu pai. Também nada mais sei do que se diz por aí. Uma tragédia!
Rafael nada disse, olhando-o apenas e perscrutando os seus pensamentos.
«Está muito calado. Confunde-me. O estranho nada pode desconfiar de que sei o que o matou.»
- Parece-me que sabeis mais do que contais. – acabou Rafael por dizer.
O homem parecera ficar mais assustado e recuou um pouco.

- Nada mais sei, de verdade!
Rafael avançava, acompanhando o movimento do homem, deixando-o deveras assustado.
«É um deles! E agora? Tenho de convencê-lo que o Artur nada me contou sobre o que ouviu.»
- Tens razão...!
«De que é que ele está a falar?!»
- Eu sou um deles e o que preciso é saber o que sabes.

Agora era definitivamente caso para fugir. O homem tentou fazê-lo, mas Rafael fora mais rápido e segurou as suas vestes, continuando a avançar até o encostar a uma mesa que se encontrava mais atrás.

- Nada sei, juro!
«Claro que vão querer proteger o seu segredo a todo o custo! Sou um homem morto!»
- Que sabes tu do nosso segredo?
«Como é que...? Parece que me lê o pensamento!»
- Que sabes tu do nosso segredo?! – insistiu Rafael.
- Nada sei sobre segredo algum!

Entretanto, o homem agarrara num utensílio de cozinha que se encontrava em cima da mesa e tentara agredi-lo para se libertar. Rafael pegou num punhal e encostou-o à sua garganta.
- Falaste a alguém sobre o segredo que não sabes? – perguntou ironicamente.
«Devia tê-lo feito, sim! E agora?»
- Já disse que não sei de que fala!...Por favor...?!
- Desculpa, não é nada pessoal.
E dizendo-o, fez a lâmina do seu punhal deslizar na garganta do homem, matando-o. Rafael largou-o e este escorregou até ao chão. Deixou-o ali, saindo rapidamente.

Ao cair da noite, não muito longe dali, Diana deitava-se e todos os acontecimentos do dia voltavam à sua mente. Não é que em algum momento tivessem deixado de lá estar, mas agora podia dedicar-lhes toda a sua atenção. O seu dragão, o dragão de Rafael, o latejar... a lua do seu dragão reluzindo. Olhava a sua marca, que agora lhe parecia um simples desenho, algo sem vida. Claro que teria sido a sua imaginação! Magia a correr-lhe pelas veias... Ah! Virou-se para o outro lado, como que procurando virar as costas àquela tolice. Mas lembrou-se do latejar que sentira na sua pele, debaixo do dragão. Olhou-a a de novo. Nada sentia. Lembrou-se do que ele lhe tinha dito sobre os pensamentos, da cortina... e então voltou a imagem de ambos sentindo-se mutuamente, respirando-se, beijando-se! Ela achava que Rafael era um homem jovem, bonito, com boa figura, mas dele nada sabia para além de que tinha uma marca como a sua e que usava a magia, o que naqueles dias representava perigo. Para além de ele achar que os seus dragões se queriam matar um ao outro! O pensamento deixou-a desconfortável. Voltou a virar-se para o outro lado, mas não conseguiu afastar aquela imagem. Podia ser impressão sua, mas parecia agora sentir o seu dragão na sua pele.

Estava cansada e não demorou muito a adormecer, mas a sua mente continuou bem activa. Nos seus sonhos, o seu dragão parecia voltar à vida, voando para fora do seu braço, querendo mostrar-lhe algo. O dragão indicou-lhe que olhasse para a sua lua e esta parecia ter vida própria, brilhando muito mais do que o que pudesse alguma vez ter imaginado vê-la brilhar no seu braço. Nesta começaram a formar-se algumas imagens e ela viu uma criança pequenita, brincando no chão. Uma mulher aproximava-se, da qual ela só conseguia ver a figura; era como se uma neblina escondesse as suas feições. Sentia uma forte emoção, não percebia se vinha da mulher, se da criança, se de si mesma por algum motivo. Era um misto de medo e... amor?!

«- Corremos perigo, meu tesouro! A última coisa que queria era separar-me de ti, mas temo pela tua vida! Espero que um dia o compreendas e me perdoes! Espero que tudo corra bem e possa ir buscar-te em breve, mas agora é preciso! »

Ela sentia que a pequenita não percebia o que a mãe lhe dizia, mas sentia a sua dor e começava a chorar.
«- Deixo-o contigo... estará seguro contigo e irá sempre proteger-te, Diana!»

A mulher pegou no bracito da criança e não demorou muito tempo antes que ela visse um dragão tomar forma no seu braço, brilhando, foi como se voasse através da sua pele, passando para o braço da criança. A pequenita parou de chorar, riu-se com o dragão e a sua lua prateada brilhante, que tinham acabado de pousar no seu braço! A criança olhou para a mãe divertida e ela pôde ver o seu rosto claramente!
- Mãe! – disse Diana, acordando de súbito e sentando-se na cama.

Raios, pensara! Porque acordara agora? Lembrava-se que, em criança, sonhava muito com a sua mãe, que lhe dizia apenas “estarei contigo sempre que precises, minha filha”. Mas nada tão real como naquela noite. Voltou a deitar-se e deixou-se estar sossegada, queria adormecer rapidamente e voltar àquele sonho, mas o resto da noite foi, para si, silenciosa.

Sob a Marca do Dragão - Cap. 2 (parte 1 de 2)


Assim que chegou a Quebir, a meio dia de viagem, Rafael foi ao encontro de Lucas. Era ele quem por norma lhe pedia para tratar dos assuntos que necessitavam de atenção urgente e que tinham a ver com a protecção dos membros da Irmandade. Lucas era o braço direito de Elias, quem dirigia aquele mosteiro da irmandade. Rafael entregou-lhe a carta, afiançando ter resolvido o assunto. Após a leitura desta, Lucas aparentava um ar de consternação.

- Mais alguém sabe o que ele ouviu. Diz aqui que um amigo de confiança lhe recomendou o mensageiro por acreditar que, detentor daquela informação, ele se encontraria em perigo!
- Alguma pista sobre a sua identidade?
- Nenhuma. Tens de descobrir-lhe o rasto e resolver a situação urgentemente! O assunto não pode espalhar-se! – disse, aproximando-se de Rafael e enfatizando a importância da resolução daquela situação.
- Partirei de imediato!
- Conto que farás um bom trabalho!

Rafael inclinou-se num cumprimento respeitoso e saiu de imediato.


fotografia de Sofia Morgado
Ao chegar à vila de onde tinha saído na manhã desse mesmo dia, dirigiu-se à taverna. Já era noite avançada. Procurou saber que notícias corriam nas bocas dos aldeões, assim como encontrar informações sobre as amizades do defunto. Ficou a saber que a notícia da morte de ambos já se tinha espalhado. Um dos aldeões com quem bebia disse-lhe que este costumava ir ali com uns indivíduos que viviam junto à muralha, na zona leste. De nada lhe valia ir até lá essa noite. Não tinha pormenores suficientes para identificar quem seriam ou onde viviam. Decidiu descansar e estar lá de manhã bem cedo.


No dia seguinte, ao chegar perto da muralha viu uma mulher sentada entre as ameias. Ele parou. Sentiu o seu dragão voltar à vida. Só podia ser a rapariga da venda. Aproximou-se devagar, observando-a. Parecia absorta nos seus pensamentos. Ao chegar perto dela, quase lhe pareceu que ela dera pela sua presença. Ela agarrou no pulso esquerdo, uma maçã rolou pelo chão e o seu punhal cravou-se na peça de fruta, parando-a. Ela ouviu o som da lâmina atravessando a maçã, olhou para trás e levantou-se assustada ao vê-lo. O seu pé resvalou, levando-a a desequilibrar-se sobre a beira da muralha. Num ápice ele agarrou o seu braço, puxando-a para si, em segurança. Diana afastou-se da beira assustada, com as mãos no peito. Depois olhou para o homem atrás de si e recuou uns passos, afastando-se dele.

- Não era minha intenção assustar-vos! – disse enquanto tirava o capuz.
Ela olhou a sua face e baixou o olhar, respirando fundo.
“Não é ele! Não tem a marca!” captou ele da rapariga.
Ele fitou-a com alguma demora e acabou por dizer:
- Sim, sou eu.
Ela sentiu-se confusa. Quase parecia que ele lhe lera os pensamentos.

Ele virou um pouco a face, continuando a olhá-la e de súbito o seu dragão começou a surgir na sua pele, do pescoço para a cara.
O queixo de Diana descaiu com a surpresa.
- Como é que...?! – ela começou a dizer.
- Aprendi a escondê-la para minha segurança.
Ela pensou que se a marca era um sinal de magia, ele tinha de facto a magia em si.
- Não sei porquê, mas tinha quase a certeza de que seria.
Ela falava a verdade, pensou ele. Não parecia conhecer as dicas do dragão.
- Porquê? – perguntou ele.
- Não sei. – respondeu ela segurando o seu pulso e sentindo o dragão por debaixo.
- Talvez por o dragão vos latejar na pele?!
- Não, quer dizer, sim... ou melhor não sei!  Como sabeis que...?
- Sempre que um dragão encontra outro, ele parece acordar. Podemos senti-lo quando nos aproximamos. – respondeu.
- Então é por isso... Não fazia ideia! Nem sabia que mais alguém pudesse ter uma marca como a minha!...
Ele deu uma risada larga. A “sua” marca! Ah!

Ela sentia-se confusa e ele percebia-o. Ela olhou demoradamente a marca que ele ostentava na face e pescoço.
- O que significa?

O desconhecimento que ela apresentava sobre algo tão importante como o seu próprio dragão, parecia-lhe impressionante. Divertido, explicou:
- É o dragão do sol!
- Aquilo é o sol? – perguntou apontando a bola dourada.
- Hmm... – disse anuindo.
- A minha marca também tem uma bola assim...
Ela teimava em chamar marca ao dragão, pensamento que o levou a sorrir.

- Assim como?
- ...É um pouco diferente! – continuou ela.
Um pensamento cruzou a sua mente e o seu sorriso logo se desvaneceu. Aquilo só podia significar uma coisa.
- Mostra-me! – disse de uma forma mais seca e autoritária, que ela nem notou com entusiasmo por saber um pouco mais sobre a sua marca.

Ela tirou o punho de pele que lhe cobria todo o antebraço e mostrou a sua marca. A bola que o seu dragão segurava era prateada.
- Então quer dizer que a minha pode ser a lua!? – pensou em voz alta.
- ... Sim! É o dragão da lua. – disse, sendo o último dragão que alguma vez esperaria encontrar.
- O que isso quer dizer?
- Que não sei se deva confiar em ti!

Agora Diana notara a diferença no trato que ele lhe dirigia. Sentira-se novamente confusa. Deixara de olhar a sua marca e fitava-o séria.
- Como assim?
- Os nossos dragões representam energias diferentes... opostas...
- ...sim?
- Não sabes mesmo nada do teu dragão?
- Sei apenas que é algo de família, mas perdi os meus pais muito nova, nada sei das suas tradições e cultos...!
- Cultos?!
Um ameaço de gargalhada seguiu a sua interjeição.

- Isto representa a magia que te corre nas veias! – continuou, segurando-lhe o braço.
- Deve ser um engano. Não há magia nenhuma em mim! – respondeu ela soltando o seu braço das mãos do estranho.
- Não sejas tola, rapariga!
- Ofendeis-me! Digo que nada sei e nenhuma magia possuo. Esta marca é apenas uma maldição que carrego e que tenho de esconder a todo o custo pela minha vida! – disse irritada.
- Sei que falas a tua verdade. Posso vê-lo! Mas vejo também que não te conheces a ti mesma! – disse ele vendo uma chama acesa de que ela própria não tinha consciência.
- Claro que me conheço! Melhor do que vós, com toda a certeza! E como assim, podeis vê-lo?!
- Os teus pensamentos são coerentes com as tuas palavras.
- Os meus... pensamentos?!
- Sim. Posso vê-los se...
- Vê-los?! Como...?!
- Claro! Não sabes mesmo nada da magia do dragão?

Agora sim, estava verdadeiramente irritada.
- Já vos disse que não! E ver os meus pensamentos? Como vos atreveis?! – dizia enquanto andava de um lado para o outro - Isso é… é... um abuso!
Impressão dele ou tinha deixado de os ver?
- Não pode ser considerado como tal. - respondeu.
- Como não?!
- Porque só posso ver o que me permitires ver. Só consigo captar o que emitires. Eu não o considero um abuso se o fizeres!
- Claro! Como se o pudesse fazer!...
- Claro que sim! A magia está em ti, quer queiras quer não. – respondeu de uma forma mais seca.
- Não saberia como...!
- Parece-me que já o fazes, embora não tenhas consciência disso.
- Não me parece.
- Então porque é que não os consigo ver desde que te chateaste?

Ela sentia-se cada vez mais confusa.
- Não fiz nada! Não saberia como...
Ele também se sentia confuso. Como é que ela nada sabia do seu dragão?
- Em que pensaste? – acabou por perguntar-lhe, respirando fundo.
Ela ficou calada por alguns momentos.
- ... Que gostaria de correr um pano de veludo preto sobre os meus pensamentos, pois são só meus! – acabou por dizer.
- É isso! Foi o suficiente! Encontraste uma forma de o fazeres naturalmente.
- Não devíeis gozar comigo dessa forma!... – tudo aquilo lhe parecia empolgante, mas de difícil existência na sua vida.
- Estou a falar muito a sério! Digo-te que nada leio em ti desde que te chateaste. – disse, começando a ficar irritado.

Ela tentava absorver tudo o que aquilo significava. Deu alguns passos afastando-se, voltando depois a aproximar-se, olhando-o, acariciando o seu dragão em silêncio.
- ... e se for verdade?... Agora ficariam ocultos? ... os pensamentos?
- Por agora. Sem treino, à medida que vais relaxando, eles vão voltando a tornar-se visíveis.
- Como sabeis?
Ele arqueou uma sobrancelha e ela percebeu. De súbito, o seu acesso voltou a ser bloqueado.
- Voltaste a correr a cortina, certo?

Seria verdade o que ele dizia? De facto, ele parecia ler-lhe os pensamentos desde que ali chegara! E tinha uma marca como a sua! E se fosse verdade? Haveria mesmo magia a correr-lhe no sangue?
- ... Quer dizer que preciso ter cuidado com os meus pensamentos? Ter cuidado com o que penso?
- Basicamente.

Diana continuou pensativa e ele não sabia em que ela pensava agora.
- Porque tenho isto no meu braço? – acabou por perguntar.
- Porque tens um destino traçado pela magia.
- E qual é esse destino?
- O teu. – disse encolhendo os ombros.
Ela ficou novamente em silêncio.
- E o vosso? – acabou por perguntar.
- ... é o meu. – respondeu ele de uma forma mais ríspida, querendo finalizar o assunto ali.
- Claro. – disse ela notando o seu desconforto. - Somos desconhecidos, certo? Nem sei o vosso nome...
- ... Rafael.

Ela estendeu-lhe a mão num cumprimento.
- Diana.
Ele estendeu o braço, segurando a mão de Diana na sua e ambos sentiram o dragão latejar mais forte.
Ela pensou que quanto mais próximos os dragões, mais forte era aquela sensação.

- Porque sinto isto? – perguntou segurando o seu dragão.
Rafael pareceu não querer responder. De facto, ele não queria falar-lhe na história dos dragões, nem no destino que lhe estava traçado
- Já disse que um dragão reconhece outro!
- Sim, mas...  
Um pensamento surgiu na sua mente sem que ela percebesse de onde vinha ou o que representava. Era a imagem dos dois dragões, um ao contrário do outro, completando um círculo. Assim como surgiu, desapareceu. Ela queria saber mais e como se seguisse o pulsar do seu dragão, Diana aproximou o seu braço do pescoço dele, pousando a sua mão no rosto marcado de Rafael. O seu dragão parecia ter vida. Poderia ser a sua imaginação, mas parecera-lhe que a sua lua prateada tinha reluzido.

- E porque fica mais forte quanto mais próximo?
- Porque eles querem a pele um do outro...!
Uma imagem de ambos sentindo-se um ao outro, respirando-se, beijando-se passou na mente de Diana. De súbito, ela olhou-o nos olhos, tirou a mão, corou, baixou a cabeça, procurando não se denunciar e... correu a cortina.
Antes do “apagão” ele captou a imagem, sentindo-a literalmente.
- Eles querem matar-se um ao outro! – disse, empurrando qualquer dúvida que pudesse querer instalar-se e rematando o assunto.
Ela recuou com os olhos bem abertos, olhando-o fixamente.
- Porquê?! – perguntou chocada.
- Porque são energias opostas.
- Mas porquê? O que é diferente muitas vezes complementa-se. O Deus e a Deusa não são energias opostas, mas complementares! – Disse Diana referindo-se ao sol e à lua das suas marcas. - Não tem de procurar-se eliminar o contrário!
- A história dos dragões não é essa!
- Contai-me essa história! – pediu.
Ele não tinha a mínima vontade. Era claro que ela não a conhecia.

- Por favor! – insistiu ela interrompendo os seus pensamentos.
- ... Outro dia. – acabou por dizer, procurando livrar-se da sua insistência.
- Por favor... parece que há parte de mim que não conheço! Nada sei sobre o passado da minha família! Preciso de saber mais!
- Tudo a seu tempo! Outro dia conto, agora não! Tenho de ir. Atraso-me.
- Outro dia, então. – respondeu ela um pouco decepcionada, vendo-o afastar-se.


Os seus pensamentos estavam em tumulto. Lembrou-se que devia perguntar-lhe como poderia esconder o seu dragão, como ele preferia referir-se à sua marca. Dar-lhe-ia muito jeito se o conseguisse. Não teria de preocupar-se em esconder a garra que teimava em estender-se quase até à sua mão, como que reclamando pela luz do sol. Poderia até deixar que a pele do seu pulso voltasse a ter a mesma cor que o resto do braço, pensou quase sorrindo.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sob a Marca do Dragão - Cap. 1 (parte 2 de 2)



Um vislumbre de quem procurava levou a sua atenção para longe dos seus pensamentos. Tinha acabado de passar por si aquele que chamavam de Mensageiro e que o levaria a quem havia escutado demais. Deveria segui-lo. Não podia arriscar perder-lhe o rasto, pois levá-lo-ia a quem poderia expor os reais propósitos da Irmandade do Amparo aos sacerdotes da nova fé. Procurava segui-lo de longe, mas a quantidade de pessoas que se encontrava na praça àquela hora do dia obrigava-o a aproximar-se mais do que gostaria. O homem que seguia olhava em volta e parecia desconfiado. Num momento em que este olhava para trás, Rafael desviou o seu rumo para uma rua que saía da praça. Viu que, um pouco mais à frente, uma escada encostada lhe proporcionava um acesso fortuito ao telhado de uma casa, ao qual subiu num ápice. Preferiu aquele ponto de vista privilegiado. Foi seguindo assim os seus passos por cima dos telhados, vendo-se forçado a saltar sempre que uma rua se atravessava pelo caminho. O homem já não olhava para trás com tanta insistência. Parecia-lhe certo de que ninguém o seguia. Mais à frente, viu-o parar junto ao ferreiro, olhou em volta e, calmamente, entrou na rua ao lado. Era uma pequena rua sem movimento, onde um homem parecia aguardá-lo. Rafael posicionou-se logo acima deles e, não havendo ninguém por perto, podia facilmente ouvir o que diziam.

- Mensageiro?
- Sim.
- Preciso que uma missiva chegue com urgência à aldeia de Cabo. Que nada se atravesse no teu caminho. Ela deve chegar ao seu destino.
- E quanto vale essa entrega?
- Um saco de moedas. – disse, soltando uma bolsa da sua cintura e atirando-a na direcção do outro.
O mensageiro abriu a bolsa, olhou para esta e de novo para o outro homem.

- Disseram-me que podia confiar que seria entregue.
- E será.
- Óptimo! Deverá ser entregue ao irmão Carlos, no templo de Santa Catarina. – disse entregando-lhe uma carta.
O outro anuiu e guardou-a, juntamente com a bolsa.

Era definitivamente ele. Não podia deixar aquela mensagem ser entregue, nem perder o seu emissor de vista, pelo que tinha de agir de imediato. Olhou em volta. Ninguém por perto. Saltou do telhado para uma carroça que estava um pouco mais à frente e daí para o chão. Ao ouvir algo, os dois homens olharam na sua direcção. Viram-no aproximar-se e pareciam não perceber de onde havia saído. Ao vê-lo, o emissor da mensagem soube de alguma forma que ele era um enviado da irmandade. Precipitou-se na direcção oposta, mas Rafael já se encontrava próximo o suficiente e desferiu um golpe de espada deixando-o prostrado no chão. O outro homem correu para alcançar a rua principal, que levava à praça, mas um punhal certeiro apanhou-o antes de o conseguir. O homem nada parecia saber sobre o assunto, mas para além de não poder deixar aquela carta seguir caminho, tinha o cauteloso hábito de não deixar testemunhas. Rafael apressou-se a chegar até ao mensageiro. Guardou a carta e a bolsa e arrastou o corpo para junto do outro. Tudo continuava calmo em volta. Lembrava-se de ter visto guardas não muito atrás, seria uma questão de tempo até os encontrarem. Tinha de sair dali. Colocou de novo o capuz sobre a cabeça, voltou à rua principal e misturou-se no meio dos aldeões.

Ao chegar à praça principal, a sua tatuagem começou a latejar de novo. Pensou que fora algures por ali que a sentira anteriormente. Olhou em volta. Pareceu-lhe que o seu dragão o levava em direcção à venda. Parou para observar a rapariga que arranjava a fruta na banca. Algo nela lhe chamava a atenção. Ficou atento. Era uma jovem bonita, morena, que aparentava ter quase vinte anos. O seu olhar descansou, então, nas suas mãos. Do seu pulso esquerdo parecia-lhe sair uma garra, brilhando, escondida por baixo de um largo punho em pele. Ele chegou perto, agarrou-lhe a mão, virando-a ligeiramente e empurrando com os dedos a pele que lhe cobria o antebraço. Apanhada desprevenida, ela não conseguiu evitá-lo. A sua mão direita foi em auxílio da outra, segurando no pulso e procurando esconder a sua marca. Mas ele já tinha visto parte do que queria; era um dragão, embora o punho de cabedal não lhe permitisse ver qual. Continuou a segurar aquela mão, olhando a rapariga, procurando descortinar algo mais. Ela percebeu com aflição que ele tinha visto a sua marca.

- Qual é o teu nome? – o estranho perguntou.
- Diana, mas... por favor, senhor...! – o seu olhar suplicava que ele não revelasse o seu segredo.  O facto de ele usar armas à vista não lhe parecia bom augúrio.
Ele olhava-a fixamente, usando as suas habilidades para captar o que ia pela mente dela. Estranhava o facto de ela parecer não reconhecer que ele também tinha o poder de um dragão.
- ... por favor, senhor! – suplicava ela.

Percebendo a imagem do seu receio, libertou a sua mão, que ela escondeu de imediato. Rafael colocou o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio e virou um pouco a face, passando o dedo pelo rebordo do capuz. O gesto foi subtil, mas suficiente para permitir antever a sua face tatuada.

Ele também tinha uma marca, pensou ela. O seu queixo descaiu com a surpresa e a curiosidade suplantou o receio de ser acusada de bruxaria. Ela levantou a mão com a intenção de afastar um pouco o capuz do estranho e ver melhor aquela marca. Ele percebeu e segurou-a a meio caminho. Tirou uma moeda da bolsa que tinha à cintura, colocando-a na mão da rapariga. E ao mesmo tempo que a libertava, pegava numa maçã para levar, afastando-se então.

- Senhor...!

Ele não parou e ela não quis chamar a atenção sobre si ou sobre ele, já que ambos pareciam carregar aquilo que muitas vezes considerava como uma maldição. Ela pensou que a sua marca podia ser escondida com a roupa, mas a dele... Para ele devia ser mesmo uma maldição carregá-la! O latejar da pele debaixo do seu dragão afastou-a daqueles pensamentos, levando-a a ajeitar o punho de pele e a olhar em volta.


A morte dos seus pais, da qual pouco sabia devido à sua tenra idade, levara-a a um início de vida numa casa que a acolhera junto a outros órfãos. Na sua adolescência, voltou a perder a figura materna, acometida por uma doença que lhe fora mortal. Lutando com as dificuldades normais daqueles tempos instáveis, vendia fruta na praça da vila para ajudar a levar comida para casa, onde vivia com o seu pai de acolhimento e mais dois irmãos de criação, um rapaz e uma rapariga; ele mais velho e ela mais nova do que Diana. Da sua marca também nada sabia, apenas que era algo de família.