terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Sob a Marca do Dragão - Cap. 2 (parte 1 de 2)


Assim que chegou a Quebir, a meio dia de viagem, Rafael foi ao encontro de Lucas. Era ele quem por norma lhe pedia para tratar dos assuntos que necessitavam de atenção urgente e que tinham a ver com a protecção dos membros da Irmandade. Lucas era o braço direito de Elias, quem dirigia aquele mosteiro da irmandade. Rafael entregou-lhe a carta, afiançando ter resolvido o assunto. Após a leitura desta, Lucas aparentava um ar de consternação.

- Mais alguém sabe o que ele ouviu. Diz aqui que um amigo de confiança lhe recomendou o mensageiro por acreditar que, detentor daquela informação, ele se encontraria em perigo!
- Alguma pista sobre a sua identidade?
- Nenhuma. Tens de descobrir-lhe o rasto e resolver a situação urgentemente! O assunto não pode espalhar-se! – disse, aproximando-se de Rafael e enfatizando a importância da resolução daquela situação.
- Partirei de imediato!
- Conto que farás um bom trabalho!

Rafael inclinou-se num cumprimento respeitoso e saiu de imediato.


fotografia de Sofia Morgado
Ao chegar à vila de onde tinha saído na manhã desse mesmo dia, dirigiu-se à taverna. Já era noite avançada. Procurou saber que notícias corriam nas bocas dos aldeões, assim como encontrar informações sobre as amizades do defunto. Ficou a saber que a notícia da morte de ambos já se tinha espalhado. Um dos aldeões com quem bebia disse-lhe que este costumava ir ali com uns indivíduos que viviam junto à muralha, na zona leste. De nada lhe valia ir até lá essa noite. Não tinha pormenores suficientes para identificar quem seriam ou onde viviam. Decidiu descansar e estar lá de manhã bem cedo.


No dia seguinte, ao chegar perto da muralha viu uma mulher sentada entre as ameias. Ele parou. Sentiu o seu dragão voltar à vida. Só podia ser a rapariga da venda. Aproximou-se devagar, observando-a. Parecia absorta nos seus pensamentos. Ao chegar perto dela, quase lhe pareceu que ela dera pela sua presença. Ela agarrou no pulso esquerdo, uma maçã rolou pelo chão e o seu punhal cravou-se na peça de fruta, parando-a. Ela ouviu o som da lâmina atravessando a maçã, olhou para trás e levantou-se assustada ao vê-lo. O seu pé resvalou, levando-a a desequilibrar-se sobre a beira da muralha. Num ápice ele agarrou o seu braço, puxando-a para si, em segurança. Diana afastou-se da beira assustada, com as mãos no peito. Depois olhou para o homem atrás de si e recuou uns passos, afastando-se dele.

- Não era minha intenção assustar-vos! – disse enquanto tirava o capuz.
Ela olhou a sua face e baixou o olhar, respirando fundo.
“Não é ele! Não tem a marca!” captou ele da rapariga.
Ele fitou-a com alguma demora e acabou por dizer:
- Sim, sou eu.
Ela sentiu-se confusa. Quase parecia que ele lhe lera os pensamentos.

Ele virou um pouco a face, continuando a olhá-la e de súbito o seu dragão começou a surgir na sua pele, do pescoço para a cara.
O queixo de Diana descaiu com a surpresa.
- Como é que...?! – ela começou a dizer.
- Aprendi a escondê-la para minha segurança.
Ela pensou que se a marca era um sinal de magia, ele tinha de facto a magia em si.
- Não sei porquê, mas tinha quase a certeza de que seria.
Ela falava a verdade, pensou ele. Não parecia conhecer as dicas do dragão.
- Porquê? – perguntou ele.
- Não sei. – respondeu ela segurando o seu pulso e sentindo o dragão por debaixo.
- Talvez por o dragão vos latejar na pele?!
- Não, quer dizer, sim... ou melhor não sei!  Como sabeis que...?
- Sempre que um dragão encontra outro, ele parece acordar. Podemos senti-lo quando nos aproximamos. – respondeu.
- Então é por isso... Não fazia ideia! Nem sabia que mais alguém pudesse ter uma marca como a minha!...
Ele deu uma risada larga. A “sua” marca! Ah!

Ela sentia-se confusa e ele percebia-o. Ela olhou demoradamente a marca que ele ostentava na face e pescoço.
- O que significa?

O desconhecimento que ela apresentava sobre algo tão importante como o seu próprio dragão, parecia-lhe impressionante. Divertido, explicou:
- É o dragão do sol!
- Aquilo é o sol? – perguntou apontando a bola dourada.
- Hmm... – disse anuindo.
- A minha marca também tem uma bola assim...
Ela teimava em chamar marca ao dragão, pensamento que o levou a sorrir.

- Assim como?
- ...É um pouco diferente! – continuou ela.
Um pensamento cruzou a sua mente e o seu sorriso logo se desvaneceu. Aquilo só podia significar uma coisa.
- Mostra-me! – disse de uma forma mais seca e autoritária, que ela nem notou com entusiasmo por saber um pouco mais sobre a sua marca.

Ela tirou o punho de pele que lhe cobria todo o antebraço e mostrou a sua marca. A bola que o seu dragão segurava era prateada.
- Então quer dizer que a minha pode ser a lua!? – pensou em voz alta.
- ... Sim! É o dragão da lua. – disse, sendo o último dragão que alguma vez esperaria encontrar.
- O que isso quer dizer?
- Que não sei se deva confiar em ti!

Agora Diana notara a diferença no trato que ele lhe dirigia. Sentira-se novamente confusa. Deixara de olhar a sua marca e fitava-o séria.
- Como assim?
- Os nossos dragões representam energias diferentes... opostas...
- ...sim?
- Não sabes mesmo nada do teu dragão?
- Sei apenas que é algo de família, mas perdi os meus pais muito nova, nada sei das suas tradições e cultos...!
- Cultos?!
Um ameaço de gargalhada seguiu a sua interjeição.

- Isto representa a magia que te corre nas veias! – continuou, segurando-lhe o braço.
- Deve ser um engano. Não há magia nenhuma em mim! – respondeu ela soltando o seu braço das mãos do estranho.
- Não sejas tola, rapariga!
- Ofendeis-me! Digo que nada sei e nenhuma magia possuo. Esta marca é apenas uma maldição que carrego e que tenho de esconder a todo o custo pela minha vida! – disse irritada.
- Sei que falas a tua verdade. Posso vê-lo! Mas vejo também que não te conheces a ti mesma! – disse ele vendo uma chama acesa de que ela própria não tinha consciência.
- Claro que me conheço! Melhor do que vós, com toda a certeza! E como assim, podeis vê-lo?!
- Os teus pensamentos são coerentes com as tuas palavras.
- Os meus... pensamentos?!
- Sim. Posso vê-los se...
- Vê-los?! Como...?!
- Claro! Não sabes mesmo nada da magia do dragão?

Agora sim, estava verdadeiramente irritada.
- Já vos disse que não! E ver os meus pensamentos? Como vos atreveis?! – dizia enquanto andava de um lado para o outro - Isso é… é... um abuso!
Impressão dele ou tinha deixado de os ver?
- Não pode ser considerado como tal. - respondeu.
- Como não?!
- Porque só posso ver o que me permitires ver. Só consigo captar o que emitires. Eu não o considero um abuso se o fizeres!
- Claro! Como se o pudesse fazer!...
- Claro que sim! A magia está em ti, quer queiras quer não. – respondeu de uma forma mais seca.
- Não saberia como...!
- Parece-me que já o fazes, embora não tenhas consciência disso.
- Não me parece.
- Então porque é que não os consigo ver desde que te chateaste?

Ela sentia-se cada vez mais confusa.
- Não fiz nada! Não saberia como...
Ele também se sentia confuso. Como é que ela nada sabia do seu dragão?
- Em que pensaste? – acabou por perguntar-lhe, respirando fundo.
Ela ficou calada por alguns momentos.
- ... Que gostaria de correr um pano de veludo preto sobre os meus pensamentos, pois são só meus! – acabou por dizer.
- É isso! Foi o suficiente! Encontraste uma forma de o fazeres naturalmente.
- Não devíeis gozar comigo dessa forma!... – tudo aquilo lhe parecia empolgante, mas de difícil existência na sua vida.
- Estou a falar muito a sério! Digo-te que nada leio em ti desde que te chateaste. – disse, começando a ficar irritado.

Ela tentava absorver tudo o que aquilo significava. Deu alguns passos afastando-se, voltando depois a aproximar-se, olhando-o, acariciando o seu dragão em silêncio.
- ... e se for verdade?... Agora ficariam ocultos? ... os pensamentos?
- Por agora. Sem treino, à medida que vais relaxando, eles vão voltando a tornar-se visíveis.
- Como sabeis?
Ele arqueou uma sobrancelha e ela percebeu. De súbito, o seu acesso voltou a ser bloqueado.
- Voltaste a correr a cortina, certo?

Seria verdade o que ele dizia? De facto, ele parecia ler-lhe os pensamentos desde que ali chegara! E tinha uma marca como a sua! E se fosse verdade? Haveria mesmo magia a correr-lhe no sangue?
- ... Quer dizer que preciso ter cuidado com os meus pensamentos? Ter cuidado com o que penso?
- Basicamente.

Diana continuou pensativa e ele não sabia em que ela pensava agora.
- Porque tenho isto no meu braço? – acabou por perguntar.
- Porque tens um destino traçado pela magia.
- E qual é esse destino?
- O teu. – disse encolhendo os ombros.
Ela ficou novamente em silêncio.
- E o vosso? – acabou por perguntar.
- ... é o meu. – respondeu ele de uma forma mais ríspida, querendo finalizar o assunto ali.
- Claro. – disse ela notando o seu desconforto. - Somos desconhecidos, certo? Nem sei o vosso nome...
- ... Rafael.

Ela estendeu-lhe a mão num cumprimento.
- Diana.
Ele estendeu o braço, segurando a mão de Diana na sua e ambos sentiram o dragão latejar mais forte.
Ela pensou que quanto mais próximos os dragões, mais forte era aquela sensação.

- Porque sinto isto? – perguntou segurando o seu dragão.
Rafael pareceu não querer responder. De facto, ele não queria falar-lhe na história dos dragões, nem no destino que lhe estava traçado
- Já disse que um dragão reconhece outro!
- Sim, mas...  
Um pensamento surgiu na sua mente sem que ela percebesse de onde vinha ou o que representava. Era a imagem dos dois dragões, um ao contrário do outro, completando um círculo. Assim como surgiu, desapareceu. Ela queria saber mais e como se seguisse o pulsar do seu dragão, Diana aproximou o seu braço do pescoço dele, pousando a sua mão no rosto marcado de Rafael. O seu dragão parecia ter vida. Poderia ser a sua imaginação, mas parecera-lhe que a sua lua prateada tinha reluzido.

- E porque fica mais forte quanto mais próximo?
- Porque eles querem a pele um do outro...!
Uma imagem de ambos sentindo-se um ao outro, respirando-se, beijando-se passou na mente de Diana. De súbito, ela olhou-o nos olhos, tirou a mão, corou, baixou a cabeça, procurando não se denunciar e... correu a cortina.
Antes do “apagão” ele captou a imagem, sentindo-a literalmente.
- Eles querem matar-se um ao outro! – disse, empurrando qualquer dúvida que pudesse querer instalar-se e rematando o assunto.
Ela recuou com os olhos bem abertos, olhando-o fixamente.
- Porquê?! – perguntou chocada.
- Porque são energias opostas.
- Mas porquê? O que é diferente muitas vezes complementa-se. O Deus e a Deusa não são energias opostas, mas complementares! – Disse Diana referindo-se ao sol e à lua das suas marcas. - Não tem de procurar-se eliminar o contrário!
- A história dos dragões não é essa!
- Contai-me essa história! – pediu.
Ele não tinha a mínima vontade. Era claro que ela não a conhecia.

- Por favor! – insistiu ela interrompendo os seus pensamentos.
- ... Outro dia. – acabou por dizer, procurando livrar-se da sua insistência.
- Por favor... parece que há parte de mim que não conheço! Nada sei sobre o passado da minha família! Preciso de saber mais!
- Tudo a seu tempo! Outro dia conto, agora não! Tenho de ir. Atraso-me.
- Outro dia, então. – respondeu ela um pouco decepcionada, vendo-o afastar-se.


Os seus pensamentos estavam em tumulto. Lembrou-se que devia perguntar-lhe como poderia esconder o seu dragão, como ele preferia referir-se à sua marca. Dar-lhe-ia muito jeito se o conseguisse. Não teria de preocupar-se em esconder a garra que teimava em estender-se quase até à sua mão, como que reclamando pela luz do sol. Poderia até deixar que a pele do seu pulso voltasse a ter a mesma cor que o resto do braço, pensou quase sorrindo.

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